Psicose e Arte: o papel da metáfora delirante
Written by Adonai Estrela Medrado   
Monday, 07 December 2009 03:35

Sobre

Este material foi apresentado por Adonai Medrado, Alexandre Lino e Clara Vasconcelos em dezembro/2009 como requisito para aprovação na disciplina Psicopatologia I do Curso de Psicologia/UBFA. O original em PDF pode ser baixado aqui.

Introdução

“Eu experimentei um período de uma lucidez assustadora. Naqueles momentos onde a natureza era tão bela. Não estou tão certo de mim mesmo e as pinturas aparecem com num sonho. Quanto mais medonho, velho, rabfugento; quanto mais doente e pobre eu me tornar, mais tentarei realizar emendas, tornando minhas cores mais vibrantes, mais harmônicas e mais radiantes. Coloco o meu coração e a minha alma dentro do meu trabalho e tenho perdido minha mente nesse processo”.
Vincent Van Gogh (apud WALTER; METZGER, 1996)

O presente trabalho tem como objetivo estabelecer relações entre a arte, a metáfora delirante e a estabilização de indivíduos psicóticos, sendo estes, temas comentados a partir de uma perspectiva psicanalítica.

A arte, ao lado da linguagem, pode ser vista como um grande diferencial humano, sendo inclusive determinante na caracterização de uma época ou cultura e tendo o seu nascimento certamente ligado a filogênese humana. A Psicanálise tem se ocupado deste tema desde seus primórdios, referindo-se tanto a sua expressão "normal" quanto a "patológica".

A utilização da arte como fonte de estabilização pode ser observada no cotidiano e na história de forma muito clara. Pode-se citar inúmeros artistas que foram capazes de encontrar uma saída para suas questões através de suas produções, como foi o caso de Joyce, Fernando Pessoa, Schereber e Arthur Bispo do Rosário. Além disso, observa-se uma crescente utilização de técnicas artísticas no tratamento de sofrimento e adoecimento psíquico, bem como é possível perceber também, que as produções artísticas dizem muito sobre a estrutura psíquica dos seus autores. A arte tem a capacidade tanto de estabilizar indivíduos pós-surto quanto de permitir que o indivíduo psicótico se conecte com o real sem surtar. No primeiro caso, observa-se que a produção artística geralmente vem acompanhada da formação de uma metáfora delirante, que permite a reintegração do sujeito à sociedade.

A partir da percepção da inegável ligação entre estes conceitos e do entendimento de que o conhecimento e as discussões possíveis sobre o tema têm imenso valor na formação de psicólogos capazes de lidar com o sofrimento psíquico e com as técnicas utilizadas atualmente no tratamento destes sofrimentos, procura-se estabelecer uma discussão entre a arte, a metáfora delirante, a importância das criações artísticas na estruturação de alguns notórios artistas e sobre a utilização destas técnicas nos Centros de Atenção Psicossocial e hospitais psiquiátricos.

Relações entre a arte e a psicanálise

Segundo Chaui (2003), existe no senso comum um conflito na idéia do que vem a ser arte. Para ela, isto é percebido quando se pergunta a uma pessoa o que é um artista e o que é uma obra de arte. Ela afirma ser quase certo que ao se perguntar a uma pessoa o que é um artista que ela responderá que é o ator, o compositor musical e o cantor, incluindo, em alguns casos, os bailarinos. Por outro lado, ao se perguntar o que vem a ser uma obra de arte é praticamente certo que se falará nos quadros de Leonardo da Vinci, das esculturas de Michelangelo, das sonatas de Beethoven, etc. Não há assim uma correspondência entre as enumerações que são efetuadas para o que vem a ser artista e o que vem a ser obra de arte. A visão popular de artista exprime a cultura de massa ou cultura de espetáculo, enquanto a visão de obra de arte aproxima-se da cultura erudita ou cultura de elite. Este distanciamento seria explicado por uma sociedade divida em classes sociais onde somente alguns poderiam entender e fruir a arte.

Aproximando-se de uma definição mais formal e técnica que a popular, Houaiss (2009) traz duas rubricas filosóficas para a palavra arte. A primeira remete-se ao platonismo para definir arte como “habilidade ou disposição dirigida para a execução de uma finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional”. A segunda remonta ao aristotelismo e diz que arte é o “conjunto de meios e procedimentos através dos quais é possível a obtenção de finalidades práticas ou a produção de objetos; técnica”. Mas seria toda arte realizada de forma consciente e teria fins práticos?

A psicanálise pode ajudar a compreender até que ponto a arte é realizada de forma consciente. Freud (1997a) associa a produção artística à sublimação. Esta é vista como meio para defletir a excitação sexual (FREUD, 1997b) e fonte das atividades artísticas (FREUD, 1997a). Para ele, a constituição inata de cada indivíduo estabeleceria qual parte da pulsão sexual seria possível sublimar e qual seria utilizada, ressalvando que nunca seria possível uma sublimação total (FREUD, 1997c). Freud (1997d) exemplifica com o caso de Leonardo da Vinci que teria conseguido sublimar a maior parte da sua libido em ânsia pela pesquisa.

A sublimação seria uma das vicissitudes, ou seja, um dos destinos possíveis da pulsão sexual (FREUD, 1997f). Ela serviria ao fim prático de manter o sujeito que não conseguisse obter satisfação sexual livre de sintoma patológico (FREUD, 1997b). Como o recalque, a sublimação é um mecanismo de defesa que opera inconscientemente, então pelo menos parte da motivação do artista permanece oculta do mesmo. Lembra-se que “a defesa em psicanálise dirige-se contra uma miragem, um nada, um vazio, e não contra tudo o que existe e pesa na vida” (LACAN, 2002, p. 246).

Outro conceito psicanalítico utilizado para entender a relação do sujeito com a arte é o de metáfora delirante. Para compreender este construto teórico parece fundamental desmembrá-lo em suas partes (metáfora/delírio) para depois reconstituí-lo e entendê-lo no contexto em que é utilizado na psicanálise.

Segundo Lacan (2002, p. 248), “a metáfora não é a coisa no mundo das mais fáceis de falar”. Ele acredita que defini-la como uma comparação abreviada não é inteiramente satisfatório e não seria aceito por poeta algum. Conforme afirma: “ali onde a metáfora cessa, a poesia também” (2002, p. 248). A metáfora exigiria o discurso: não há metáfora no mundo animal. Segundo Menicucci (2008), a metáfora é uma noção fundamental no âmbito da psicanálise. Entretanto, para ela, Lacan se serve do conceito de maneira inédita inserindo-o em suas formulações teórico-clínicas, porém mantendo o mesmo significante para tratar de algo bem diferente daquilo que se encontrava no campo da retórica clássica, da poética e da lingüística.

A metáfora supõe que uma significação seja o dado que domina, e que ela inflete, comanda o uso do significante, tão bem que toda espécie de conexão preestabelecida, diria lexical, se acha desatada. (LACAN, 2002, p. 249)

Piéron (1996, p. 134) define delírio como “crença patológica em fatos irreais ou concepções imaginativas destituídas de base”. Este autor acredita que a justificativa do delírio está em falsa interpretação ou percepção. Tratar-se-iam de elaborações próximas da incoerência, da fantasia ou da pura imaginação. Segundo Menicucci (2008), data de 1814 a relação entre delírio e déficit, na medida em que se tinha uma confiança nas sensações conferindo-se ao bom uso das percepções a garantia da não loucura. Valorizava-se desde esta época o déficit em oposição aos aspectos criativos do delírio.

Menicucci (2008) volta a atenção para a abordagem estruturalista da psicanálise que percebe o delírio como tentativa de cura. Esta abordagem permitiu a “apreensão daquilo que estava por trás da formação delirante e que impulsionava um dispendioso trabalho de construção” (MENICUCCI, 2008, p. 52). Freud (1997e) estabelece: “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”.

Para Menicucci (2008), as formulações de Lacan a respeito da metáfora delirante trazem a perspectiva de tratamento da psicose pela psicose. Menicucci (2008, p. 74) explicita a tese lacaniana: “a metáfora delirante teria a função de fazer suplência à metáfora paterna – ou seja, suprir a falta de inscrição do significante do Nome-do-Pai”. Segundo Menicucci (2008), esta tese está ancorada na percepção de Lacan de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, fato que põe a metáfora em um lugar fundamental: “a metáfora teria um princípio de estabilização, um ponto de basta, algo que detém o deslizamento do significado sobre o significante, permitindo, assim, a sustentação de uma significação” (MENICUCCI, 2008, p. 75). A mesma autora completa:

[...] o que está em jogo nas psicoses é a questão da significação, mas uma significação outra, que não opera a partir da substituição significante efetuada pela metáfora paterna. Nesse sentido, o delírio é uma tentativa de cura pela via da significação. Mas a construção delirante só ganha estatuto de metáfora delirante quando atinge a função de restabelecer a relação entre o significante e o significado. (MENICUCCI, 2008, p. 75)

Assim, a metáfora delirante restabelece a relação entre significante e significado necessária a estabilização do psicótico e às vezes é viabilizada, retratada e/ou concretizada na arte. Talvez o exemplo mais clássico seja o livro de memória de Daniel Paul Schreber: Memórias de um Doente dos Nervos.

A arte e a metáfora delirante como possibilitadoras de retorno ao convívio social

Estruturas psicóticas são provenientes da foraclusão do nome do pai. A psicose não permite que os sujeitos sejam inseridos no mundo do simbólico, o que faz com que suas questões retornem no âmbito do real, em formato de delírios, alucinações e neologismos.

Mas então porque unir a metáfora delirante e a psicose? De certa forma, algumas atividades provenientes da necessidade de exteriorizar sentimentos, dentre elas a produção artística, permitem que indivíduos com estruturas psicóticas consigam expressar-se através de suas obras no real, sem a necessidade de entrar em surto psicótico, como foi o caso de Fernando Pessoa e Joyce. Para aqueles indivíduos que já passaram a expressarem-se no real, as produções artísticas ajudam a estruturar suas questões e estabilizar-se em um delírio/alucinação que os permita interagir com o resto da sociedade. Tal possibilidade relaciona-se com a formulação de uma metáfora delirante, como foi o caso de Arthur Bispo do Rosário e de Schereber.

Metáfora delirante

A metáfora delirante tem um papel fundamental no processo de estabilização de indivíduos psicóticos, uma vez que funciona como ponto de basta dos remanejamentos significantes que afetam o relacionamento do significante e significado, provenientes da falta do nome do pai, do furo da cadeia simbólica (DA FONTE, 2004).  A metáfora delirante inicia um segundo tempo do delírio, onde os antigos sintomas aos quais o paciente tinha sucumbido dão lugar a um delírio menos perturbador, que não deixa de ser delírio, mas que permite que o sujeito consiga dar algum significado a sua existência, permitindo a ele então se reintegrar a alguns aspectos da sua vida antes do surto. A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução. Tal reconstrução após a catástrofe é bem sucedida em maior ou menor grau, mas nunca inteiramente (FREUD, 1911 apud DA FONTE, 2004). A metáfora delirante oferece uma possibilidade à metaforização pelo nome do pai (GOTARDO, 1996), oferece uma estabilização, devolve de certa forma a função da palavra, organizando um pouco o campo da linguagem. Assim sendo, a metáfora delirante vem organizar uma transferência em relação à posição opressora e sufocante do grande Outro, conseguindo estabelecer uma relação com a demanda deste Outro.

Caso Schreber

É possível observar a relação da metáfora delirante e da arte no caso Schreber, onde, através da escrita deste autor, é possível identificar de forma bastante clara a estrutura psicótica do sujeito. Schereber, que inclusive foi um dos casos analisados por Freud, foi um juiz que em 1884, em face de sua possível candidatura às eleições de Reichtag, adoeceu pela primeira vez. Nesta época é diagnosticada uma hipocondria grave, que se suaviza após seis meses. Nove anos depois, novamente convocado a assumir um cargo, a se posicionar enquanto sujeito, começa a sonhar que sua antiga doença retornou. Aos poucos este pensamento dá lugar a ideia de que seria bom ser uma mulher e se submeter ao ato da cópula. Passa a ouvir vozes provenientes de alucinações e compõe um delírio de perseguição, onde seu médico era o principal mandante. A partir daí começa a ver seu corpo despedaçado ou transformado em cadáver. Por ser um sujeito foracluído do simbólico, a convocação proveniente da nomeação como juiz presidente da corte de apelação faz com que ele retorne o que deveria vir no simbólico na figura de um outro mortífero. Schreber é lançado num gozo anárquico, caótico, sem lei (DA FONTE, 2004). Este delírio só é organizado a partir do momento em que surge sua metáfora delirante, de que Deus o transformou em mulher para que pudessem copular e criar uma nova raça. Com a estabilização do delírio, ele retorna às suas atividades e ao convívio social, escrevendo então o seu livro. Os seus textos demonstram um homem inteiramente submetido ao gozo de um grande Outro, que após a estabilização do delírio consegue se posicionar, ainda que minimamente em contexto real. Como se a arte não fosse suficiente para indicar as características estruturais dos sujeitos, observa-se que ela também aparece após a estabilização do delírio.

No caso de Schereber, não só a arte teve o papel de denunciar a estrutura por trás dos adoecimentos e questões apresentadas pelo juiz, como após a estabilização dos delírios foi escolhida como uma das possibilidades para esta nova vida. Depois de todo seu sofrimento psíquico, ele escolhe escrever sobre isso, escrever sobre o processo, transformar em arte seu sofrimento, sua organização mental, sua existência.

Observa-se, portanto, que a relação da arte com a estabilização de pacientes psicóticos e com a possibilidade de formar uma metáfora delirante é bastante forte.  A arte favorece a criação de uma identidade, gera descobertas capazes de diminuir, apaziguar o sofrimento psíquico, impedindo que este sofrimento ecloda em forma de sintomas. Bartucci (2000) afirma que a relevância da experiência artística reside no fato desta permitir a intensidade e os excessos pulsionais, bem como dá a possibilidade de, por meio da criação artística, estruturar a realidade de modo pessoal e estilizado, construindo destinos possíveis para as forças pulsionais, ordenando circuitos e inscrevendo a pulsão no registro simbólico

Caso Arthur Bispo do Rosário

Pouco se sabe da história de Arthur Bispo do Rosário em época anterior à sua internação na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde morou por mais de 50 anos até a sua morte. Sabe-se que é originário de uma cidade no interior de Sergipe, Japaratuba, nascido em 1909 e que se mudou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na Light, companhia de energia elétrica do Rio de janeiro, entre 1925 e 1938, quando foi acometido por um surto psicótico delirante, às vésperas do natal. Em seu surto, acreditava ter visto Cristo descendo à terra com sua corte de anjos azuis e de ter recebido deste a missão de ser portador da imagem do mundo perante Deus no dia do Juízo Final. Deveria recriar o universo, tornando-se Deus de seu mundo, para então apresentar ao Criador original. Foi diagnosticado como esquizofrênico paranóide e nunca mais se recuperou. Viveu até o fim de sua vida na colônia Juliano Moreira, onde faleceu em 1989. Foi sempre considerado como um interno produtivo, pois inicialmente trabalhava na cozinha, e inclusive tinha autorização para sair da colônia e regressar quando bem lhe conviesse, mas não se tem registro de ele tê-lo feito alguma vez.

Portador da missão de apresentar o mundo perante Deus, Sua arte baseava-se na criação de esculturas, faixas, bandeiras e reinterpretações de objetos do cotidiano. Sua busca era a de recriar o universo, tornando-se Criador, para apresentá-lo a um outro e maior Criador, mostrando a sua percepção de mundo ao Pai. Para isso, deveria estar portando um uniforme, uma espécie de manto. Nota-se que este manto aproxima-se em muito dos trajes da nobreza, com suas próprias dragonas e condecorações. Bispo mostra desde o início de sua obra uma obrigação com o seu dever. Existe método em sua produção e na escolha dos objetos mumificados com os fios de seu uniforme de interno desbotado e esse método é seguido à risca ao longo dos 50 anos de produção de sua obra e de mais de 1000 peças produzidas.

Agia sob influência de “vozes” que lhe diziam o que fazer. Ao construir sua arte com os objetos do dia a dia, permitia criar para si próprio uma re-significação do mundo, que fosse mais sustentável e mais próxima de seu entendimento. É preciso notar que em nenhum momento ao longo de sua vida, Bispo do Rosário fez qualquer tipo de trabalho envolvendo santos ou imagens de cunho religioso normativo, ou que este tenha produzido imagens em tela ou desenhos de qualquer tipo. Sua arte era a da reinterpretação do mundo, pois ao fazê-lo, reinterpretava a si e se estabilizava em seu delírio.

Hoje, sua obra atravessou os muros da Colônia e reside em boa parte no Museu Bispo do Rosário, criado em 1982, mas já esteve presente em exposições de arte no mundo todo.

A arte nos Centros de Atenção Psicossocial

A arte tem sido reconhecida como importante peça no tratamento de pacientes psicóticos. Ela, como meio para expressão e comunicação de sentimentos, representa para os profissionais que trabalham com a clínica da psicose uma importante fonte de conhecimento.

Silva e Alencar (2009) colocam as práticas criativas como dispositivo privilegiado dos novos serviços de atenção psicossocial no tratamento das psicoses. Eles as relacionam com a clínica da suplência de Lacan. Para Silva e Alencar (2009), o trabalho subjetivo, implicado no ato de inventar, de transformar, de se ocupar da materialidade do significante pode fazer frente ao vazio do Nome-do-Pai. Segundo eles, a metáfora delirante é parte do constante trabalho psíquico de reconstrução do laço com o Outro.

A Portaria do Ministério da Saúde nº 336-02 estabelece os diversos Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS) e põe como obrigatório o atendimento do paciente em oficinas terapêuticas executadas por profissional de nível superior ou nível médio. Silva e Alencar (2009) acreditam que os objetivos de uma oficina terapêutica não são o reconhecimento artístico e que seus produtos não possuem sentido em si mesmos. Tal sentido, caso exista, seria encontrado no fazer singular do psicótico. Eles afirmam que o trabalho nas oficinas terapêuticas terá “uma função variável para cada usuário da oficina, ou seja, dependerá de como o paciente, com o seu ‘saber-fazer’, irá se relacionar com o material oferecido pela oficina terapêutica”. Para Guerra (2008 apud SILVA; ALENCAR, 2009) não haveria possibilidade de prever a priori os efeitos do trabalho do paciente em uma oficina. Sobre o papel do oficineiro:

O que é importante é o acidente, a descoberta acidental, a oportunidade que se abre e a que o sujeito responde, dando, a um material qualquer, um lugar único. Estamos no campo da reinvenção, como os pacientes. E, isso, parece incluir, também, o oficineiro. [...] O papel do oficineiro, de estar disponível para o encontro com a psicose, de se adaptar ao estilo do usuário, vai além de não atribuir significações às produções dos psicóticos, e, se acusa o recebimento destas, ele é um tipo modificado de secretário do alienado, já que não pode, em hipótese alguma, tomar para si a tarefa de apostar no delírio, no trabalho do delírio, como indicava Lacan nas primeiras elaborações sobre o tratamento das psicoses. (SILVA; ALENCAR, 2009)

Para Guerra (2008 apud SILVA; ALENCAR, 2009), nas oficinas não deveria haver exigências de estética nem nenhuma ideologia para definir ou significar as produções. O paciente deveria ficar a vontade para produzir ao acaso favorecendo seu gozo em cada produção. A aceitação social da produção é menos importante do que o trabalho psíquico do paciente.

Silva e Alencar (2009) relatam o caso do paciente Selton que participava da oficina terapêutica “expressiva”. Selton chegava sempre cedo e era o último a sair, a única coisa que costumava fazer era estudar os livros de química que trazia consigo para fazer uma prova que para ele aconteceria no final do ano (que nunca acabava, ou seja, se localiza em um tempo futuro ideal). O oficineiro conseguiu se aproximar dele e escutá-lo sem se colocar no lugar de mestre. Neste exemplo observa-se a atitude de não interferência na produção, mas de escuta e de acompanhamento.

No que tange à importância da arte no tratamento, Giacomelli (2008) relata um caso de um paciente de vinte e nove anos que chega a clínica de repouso Parque Julieta com incapacidade de dormir, humor exaltado, pensamento acelerado, logorreico, com um discurso religioso e sexual. O paciente em questão já apresentava alguns delírios de grandeza e se dizia como dotado de grandes poderes que vinham aumentando. A autora propôs então que ele se expressasse através da arte. O paciente começa então a dar vida a um processo criativo que durou dias. A pintura feita pelo paciente é a figura de uma pessoa, dividida em várias partes, parecido com o momento de cisão no qual se encontrava aquele indivíduo. Foi pedido ao paciente que desse um sentido a sua pintura. Ao convocar o sujeito a dar sentido ao seu quadro ele falou justamente da cisão do seu eu, dos antagonismos que o cercavam.  Foi através da arte que este paciente foi capaz de se estabilizar, voltando, a partir daí, a ter a capacidade de se reintegrar a sociedade.

Outro exemplo de importância da arte como auxílio no tratamento é o das oficinas realizadas no Hospital Universitário Lauro Wanderley em caráter semi-aberto. Os pacientes são incentivados a interagir com diversos meios de produção expressiva como argila, massas de modelar e tintas. Pode-se perceber aqui uma preferência pelo uso de massas de modelar e de argila, pois ao mexer nessas massas e ao moldá-las à forma de seus temores, o sujeito pode torná-las reais e imóveis, como se suas angústias não pudessem mais lhe afetar. Enrijecidas, o simbólico passa a ser escultura, incapaz de lhes causar mal. Após isso, há um segundo momento onde os pacientes são convidados a falar de suas criações em grupo. Assad et al (2002) tratam da importância desse espaço, pois nesse momento o paciente adquire instrumentação para lidar com aquilo que o atemoriza, além de ser um importante evento para o estabelecimento de laços sociais – que é uma característica deficitária em pessoas de estrutura psicótica. Nesses eventos, o paciente tem a chance de interagir com outros para alcançar uma meta conjunta ou de simplesmente identificar no outro uma angústia de si mesmo.

A arte como fator estruturante que impede a formação dos sintomas psicóticos

A arte não pode ser compreendida apenas como instrumento que permite uma reintegração na sociedade de indivíduos que já apresentaram sintomas psicóticos. Grandes nomes da literatura mundial têm sido utilizados para demonstrar como a produção artística é capaz de estruturar o sujeito psicótico, fazendo com que este sujeito não precise apresentar delírios, alucinações e neologismos para conectar-se com o real. Para que tal relação possa ser melhor compreendida, cabe citar os casos de James Joyce e Fernando Pessoa.

Caso James Joyce

James Joyce foi um famoso escritor responsável por escrever uma das mais importantes obras da literatura ocidental: Ulisses. Viveu uma infância difícil em uma abastada família católica irlandesa. Seu pai delegava o cuidado dos demais filhos a Joyce, enquanto ocupava-se de cantar e beber, sendo classificado por Lacan, como um pai que não preenche as condições que fazem com que um pai tenha o direito ao respeito. Como escritor, Joyce reinventa a linguagem e a sintaxe. Radicaliza a linguagem narrativa, explorando processos de associação de imagens e recursos verbais, paródias estilísticas e o fluxo da consciência. Seu universo ficcional está enraizado fortemente em Dublin e reflete sua vida familiar e eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e faculdade. Através da literatura, Joyce não apenas é capaz de sair desta situação desestruturante, mas também é capaz de tornar a sua relação com o real algo possível sem a necessidade de surtar. Para Lacan, a escrita articula-se com o real, com o gozo e com a letra, instalando-se no mais além do que pode significar, mergulhada no não sentido, no fora do sentido, rebaixando o limite da palavra para dar forma e vida ao que se coloca inacessível e fora do limite da palavra (DA FONTE, 2004). São os textos de Joyce que permitem compreender de certa forma, como funcionava a sua relação com o real, com o simbólico, com o outro, com o gozo seu e do outro, ajudando-o a manter-se conectado com a realidade.

A arte funciona como elemento de conexão com o real para Joyce. Apesar de Joyce ser para a psicanálise um enigma, Lacan chega a indagar sobre a sua loucura, apesar de não existir uma afirmativa categórica acerca da sua estrutura psicótica (DA FONTE, 2004). A arte de Joyce o conecta ao real, mas também serve como argumento de que algo na sua relação com o simbólico era mal estruturado. Ao pedir para ser retratado em um quadro, tal autor sugere que seu retrato deveria ser um ponto de interrogação, com um velho chapéu preto de onde poderiam teias de aranha, uma etiqueta número treze colada no vestuário e uma estrela na ponta do nariz. Tantos indícios nos permitem observar que é na arte que Joyce consegue se conectar, estruturar-se e não precisar partir para um delírio psicótico, bem como é através da arte que ele é capaz de demonstrar características típicas de uma estruturação psicótica. Talvez sem a arte, Joyce perdesse sua capacidade de conviver com o mundo complexo no qual estava inserido.

Caso Fernando Pessoa

Em vida, Fernando Pessoa não obteve notoriedade que fosse correspondente a seus escritos. Apenas dois livros foram publicados em seu nome e seus rendimentos financeiros advinham de seu ofício como tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras. Juntamente a outros amigos, lançou em 1915 a revista Orpheu, cuja data representa o marco de início do Modernismo em Portugal. Seu único prêmio conquistado em vida pela suas poesias foi o livro publicado com dinheiro emprestado chamado de Mensagem. Morre de cirrose hepática, derivada de sua vida boêmia, a 30 de Novembro de 1935, aos 47 anos de idade.

De toda a obra de Fernando Pessoa, o que mais chama a atenção são seus heterônimos. Diferentemente dos pseudônimos, que são meros nomes diferentes pelos quais um autor pode assinar a sua obra, os heterônimos são seres completos, com histórias e estilos totalmente diferentes. Fernando Pessoa começou a criar seus heterônimos desde sua adolescência. O grande marco aqui é em 1914, quando em um único dia ele cria Alberto Caeiro e toda a sua obra, composta de 49 poemas sob o título de O Guardador de Rebanhos. Um dado curioso surge nesse momento, visto que Pessoa considerava-se discípulo de seu próprio heterônimo, bem como considerava que dois outros seus heterônimos também o eram de Alberto Caeiro. É difícil caracterizar Pessoa como possuidor de distúrbio de múltipla personalidade, visto que não havia nenhum outro indício psicossocial do mesmo. Alguns trechos de Álvaro de Campos, entretanto, são dignos de nota:

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Podem-se perceber tendências esquizofrênicas nesses e em outros escritos, mas Fernando Pessoa, através de sua poesia e de seus heterônimos, sempre foi tido como pessoa sã e “normal” e foi através deles que Pessoa mantinha sua relação com o real bem estruturada. Através de sua heteronímia, Pessoa conseguia suprir uma carência de autores do modernismo português, fracionado em tantas vertentes, como dadaísmo, futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo, etc., através da fração de sua personalidade. Para ele, não havia momento onde ele se sentia mais si do que quando ele era outro.

Sem a arte para estruturar essa divisão de personalidades, Pessoa talvez tivesse encontrado uma saída na criação do delírio. Ao escrever sobre seus sentimentos e ao trazer para a escrita o que é simbólico, ele defende-se da ameaça de despedaçamento de sua personalidade em tantas outras.

Conclusão

A partir das experiências apresentadas neste trabalho, inclusive e especialmente aquelas que se referem à utilização destas técnicas no tratamento do sofrimento psíquico nos dias atuais, é possível observar que a arte pode dar uma direção no tratamento das doenças mentais. É importante ressaltar que essa arte faz ainda mais sentido quando é relacionada com o acolhimento e a escuta da clínica psicanalítica. A combinação destes dois fatores permite a reconstrução de uma realidade que até então ocorria apenas pelo viés do delírio e da alucinação.  Um exemplo do sucesso desta combinação pode ser observado com o caso citado por Giacomelli (2008). Através da arte podemos observar a projeção do sujeito em sua obra, ou seja, cada ato, expressão ou resposta de um indivíduo, de alguma forma apresenta traços de sua personalidade. É muito valioso, portanto, que os psicólogos estejam atentos aos conteúdos produzidos pelos usuários, para que a partir de suas obras, estes possam ser convocados a elaborar as suas questões.

É válido notar também que, mesmo quando o sujeito não fala de sua obra, não quer dizer que nada aconteceu. No ato de produção da arte, ela é feita por alguém para um outro alguém, no caso o psicólogo. Então mesmo que o sujeito não fale diretamente de sua obra, ainda pode haver um efeito apaziguador, devido ao fato dessa atividade basear-se num processo de linguagem, ainda que nem sempre seja necessariamente a falada. De toda forma, é necessário que haja uma individualização do tratamento de cada caso. Embora o ambiente de discussão coletiva, onde cada paciente psicótico apresente o seu trabalho criativo seja importante, mais importante ainda é entender a significação atribuída pelo sujeito à sua obra e esse processo é completamente próprio do sujeito e vai de acordo com o modo que ele opera.

Referências

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DA FONTE, Maria Lia Avelar. Do delírio ao Sinthoma: uma saída Possível. Disponível em: < http://www.interseccaopsicanalitica.com.br/int-participantes/lia-fonte/lfonte_Do_delirio_sinthoma.doc>. Acesso em: 10 de nov. 2009. In: XI Jornada Freud Lacaniana de Psicanálise, 2004, Recife. Anais da XI Jornada Freud Lacaniana de Psicanálise. Recife: Aedo Editorações, 2004.

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